segunda-feira, 1 de junho de 2020

Pravy Sektor, o "setor da direita" ucraniana


A bandeira do Pravy Sektor, partido de extrema-direita ucraniano, figurou mais uma vez nas manifestações pró-Bolsonaro na tarde de ontem, 30 de maio, em um trio elétrico e, depois, nas costas de um indivíduo que andou pela Avenida Paulista. O indivíduo que estava com a referida bandeira entrou em confronto com um participante dos atos antifascistas. A mesma bandeira já havia aparecido nas manifestações do dia 24 de maio.




Em entrevista à emissora CNN Brasil, o embaixador da Ucrânia, Rostyslav Tronenko, alegou que a bandeira não tinha ligação com o partido Pravy Sektor, alegando se tratar de fake news. Havia, nos protestos, uma bandeira azul e amarela representando as cores da Ucrânia, mas aquela trazendo as cores vermelho preto está, sim, intimamente ligada à extrema-direita ultranacionalista no país e que, no passado, a polícia brasileira chegou a investigar uma associação entre neonazistas brasileiros e guerrilheiros ucranianos.

Ucrânia e a extrema-direita

O chamado Pravy Sektor (ou "Setor Direito") surgiu como uma aliança entre grupos ultranacionalistas em novembro de 2013 e alguns de seus membros participaram dos protestos em Kiev contra o presidente Viktor Yanukovych, que havia sido eleito em 2010. A onda de protestos ficou conhecida como "Euromaidan".

O governo de Yanukovych era pró-Rússia, com alguns de seus membros sendo suspeitos de corrupção, e causou indignação entre parte da população ucraniana por decidir não assinar um acordo de cooperação com a União Europeia. A recusa do presidente em assinar o acordo se deu após ameaça, por parte do governo russo, de imposição de sanções à Ucrânia.

Isso levou à intensificação de uma polarização que remonta ao fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

De forma simplificada, a disputa na Ucrânia se deu entre aqueles que eram favoráveis à Rússia (concentrados na região leste do país, onde o idioma majoritário ainda é o russo) e aqueles que defendiam o estreitamento de laços com a União Europeia (em sua maioria, de Kiev e da região oeste).

Os partidos que se opunham ao governo de Yanukovych tomaram parte nos protestos em Kiev. Entre eles, destacaram-se o movimento Udar, liderado por Vitor Klitschko; o partido Svoboda, comandado por Oleh Tyahnybok; e o partido Bratstvo. Estes dois últimos são de extrema-direita.


Pravy Sektor

Apesar de sua presença nos protestos, o Pravy Sektor apenas se formalizou como partido em 22 de março de 2014. Eles ganharam visibilidade após confrontos violentos com a polícia em Kiev em 19 de janeiro. Dmytro Yarosh, à época líder da organização ao lado de Andriy Tarasenko, comandou os atos.

Yarosh se diz admirador e seguidor de Stepan Bandera, um líder nacionalista que lutou, nas décadas de 1930 e 40, contra a Polônia e a dominação soviética sendo, durante a Segunda Guerra Mundial, aliado nazista. A ideologia do Pravy Sektor se baseia no ultranacionalismo e a Rússia os acusa de envolvimento em ataques contra os separatistas pró-Moscou no leste ucraniano.

Em 2014, Dmytro Yarosh foi eleito para uma cadeira no parlamento ucraniano pelo partido Setor Direito. Ele está associado ao comando de nacionalistas e paramilitares que defendem a tradição do Exército Insurgente Ucraniano (que, na Segunda Guerra, lutou em aliança com nazistas) e que lutam ativamente na guerra civil separatista de Donbass, no leste da Ucrânia, ao lado do partido Svoboda e do Batalhão de Azov (este último se tornou um regimento da guarda ucraniana e é acusado de diversos crimes de guerra na região, incluindo execuções e desaparecimentos, estupros e perseguição a minorias sociais).

O Pravy Sektor se diz contrário à dominação russa e ao imperialismo do Ocidente, além de defender políticas armamentistas.

quinta-feira, 2 de maio de 2019

A perseguição ideológica no MEC


Não é de hoje que a comunidade acadêmica está apreensiva com a realidade do ensino superior no país. Os cortes nos investimentos com pesquisa vêm ocorrendo gradativamente, desde 2014, mas o bloqueio das verbas nas universidades anunciado por Abraham Weintraub, desta vez, tem uma forte motivação ideológica.

Antes de ser nomeado, Weintraub já espalhava suas ideias baseadas em teorias da conspiração, acreditando que o mundo é dominado por comunistas – que estariam à frente até dos grandes bancos (!?). Agora, no Ministério da Educação (MEC), ele tem condições de levar a cabo a guerra cultural que prega, baseado principalmente nos "ensinamentos" de Olavo de Carvalho. Em suma, Weintraub soma à paranoia comunista que perpassa o governo de Jair Bolsonaro.

A pretensão de, inicialmente, barrar 30% da verba destinada a três universidades federais (UnB, UFF e UFBA), sob a vaga justificativa de que as instituições estariam promovendo "balbúrdia", não tem outra motivação que não a ideológica. Com os questionamentos em reação às declarações, Weintraub decidiu pelo contingenciamento de todas as universidades e institutos federais.

Contudo, isso não bastou para que a tal guerra cultural se arrefecesse: o ministro declarou que considera cortar bolsas de pesquisas com "viés ideológico". Sem estabelecer quaisquer critérios, já sabemos que quem irá determinar esse viés é o próprio Weintraub e sua equipe, de modo que as Ciências Humanas serão diretamente afetadas pela visão extremamente enviesada que agora ocupa o MEC.

De modo simplificado, podemos dizer que dois fatores estão relacionados ao ataque que testemunhamos, agora, à educação em geral, e em especial ao ensino superior.

De um lado, temos uma classe média convencida de que existe uma doutrinação esquerdista em curso – que explicaria os anos de governo do PT no Brasil. Esse grupo, inflamado pelos discursos de Olavo de Carvalho e de seus seguidores, propagado pelas redes sociais e pelo YouTube e reforçado em livros que se tornaram best sellers, tem como base justamente uma intelectualidade paralela, que usa a internet de modo estratégico para se espalhar. Essa pseudo-intelectualidade desdenha da academia –seja por não conseguir adentrar no sistema, seja por não conseguir se sair bem uma vez que nele adentra – e se esforça para deslegitimar a obra e o legado de autores associados à esquerda, como Paulo Freire.

De outro lado, podemos ver como o próprio Jair Bolsonaro reflete uma outra classe, esta anti-intelectual e iletrada, como apontado por Jessé de Souza em A elite do atraso, que ao mesmo tempo inveja e odeia o conhecimento que não foi capaz de obter. Esse grupo, em sua maioria, é composto por pessoas que vieram da classe média baixa ou que ainda pertencem a ela e que se sentem empoderadas pelo anti-intelectualismo do presidente, confundido com autenticidade.

Esses dois lados acabam por se complementar, na medida em que essa intelectualidade paralela encabeçada por Olavo de Carvalho mantém um discurso simples e impactante o suficiente para que suas frases de efeito sejam reproduzidas também pelos anti-intelectuais, conquistados pelas palavras de ordem e "mitadas". Além disso, as fake news criadas por esses novos formadores de opinião encontram, nesse balaio,  um terreno bastante fértil, adubado pelo ódio, pela falta de pensamento crítico e pela dificuldade de se filtrar a veracidade das informações e notícias compartilhadas nas redes sociais.

Com a troca do ministro da Educação, passamos de um sujeito inepto e incompetente para um que parece ávido para "mostrar serviço", mas que é igualmente paranóico quanto ao projeto de gestão iniciado com discursos alarmistas em torno de supostas doutrinações. O ataque a intelectuais da área de Ciências Humanas, em especial àqueles que desenvolvem pesquisas de cunho sociopolítico, bem como aos estudantes das instituições públicas, alcançou um nível mais profundo e potencialmente perigoso.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Marielle, milícias, Rio de Janeiro e os Bolsonaros: o que tem a ver? - Parte 2

Para além da defesa pública da atividade de milicianos, a família Bolsonaro, conforme foi se revelando desde o início deste ano, tem ligações com pessoas próximas à milícia que são, no mínimo, suspeitas.

Com a prisão de parte do grupo conhecido como "Escritório do Crime", que dominava Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, a mídia divulgou que um dos foragidos, suspeito de liderar o grupo, seria Adriano Magalhães da Nóbrega, justamente aquele que fora homenageado por Flávio Bolsonaro na Alerj em 2003, à época capitão do BOPE.

Outro homenageado por Flávio no passado foi o major Ronald Paulo Alves Pereira, já preso, acusado de chefiar a milícia de Muzema, no bairro do Itanhangá – de onde partiu o carro usado na perseguição e assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes. Pereira é suspeito de grilagem em Vargem Grande e Vargem Pequena. Quando foi homenageado por Flávio, estava sendo investigado pela participação na execução de cinco jovens em 2003.

Em tempo, "grilagem" é um termo usado para se referir à falsificação de documentos para a obtenção de terras ou prédios públicos ou de terceiros. Historicamente, essa prática no Brasil tem o envolvimento não apenas da milícia, mas também de políticos e, eventualmente, de trabalhadores do judiciário. Na primeira linha de investigação do assassinato de Marielle Franco, acreditava-se que a motivação do crime seria a de que a vereadora estaria atrapalhando o esquema de grilagem com sua atuação nas comunidades do Rio.

Aqui, uma outra coincidência bastante incômoda e curiosa aparece, em relação a um evento recente: dois prédios localizados em Muzema desabaram na última sexta, dia 12 de abril. As construções irregulares são parte da atuação da milícia, que, de posse dos terrenos, ergue prédios residenciais para locação. Ao todo, sete prédios do local estão em processo de interdição desde novembro de 2018, para que sejam demolidos, devido aos riscos que apresentam.

A relatora do referido processo, a desembargadora Marilia de Castro Neves Vieira, votou contra a demolição de um dos prédios que estavam sendo construídos na região. Assim, segundo o prefeito Marcelo Crivella, as edificações no loteamento irregular foram impedidas de ser demolidas em função de liminar judicial. Com o impedimento, as obras continuaram.

O nome da desembargadora é familiar por sua infame atuação nas redes sociais: à época do assassinato de Marielle, ela compartilhou a falsa informação de que a vereadora tinha relação com o Comando Vermelho, motivo pelo qual havia sido eleita. Vieira também publicou, em 2015, que era a favor de um paredão de fuzilamento "profilático" para pessoas como o então deputado Jean Wyllys.

Voltando à questão das milícias e da proximidade com Flávio Bolsonaro, descobriu-se que a esposa e a mãe de Adriano da Nóbrega, da milícia de Rio das Pedras, trabalhavam no gabinete do então deputado até novembro de 2018. Ao ser questionado, Flávio alegou que ambas foram contratadas por seu ex-assessor, Fabrício Queiroz, investigado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro após movimentações atípicas de grandes quantias de dinheiro em sua conta. Também recai uma suspeição sobre transações por parte da mãe de Adriano da Nóbrega, Raimunda Veras Magalhães, para Queiroz.

Queiroz alegou ter se tornado amigo de Adriano quando os dois trabalhavam no 18º Batalhão da Polícia Militar e que indicou a esposa e a mãe para o gabinete de Flávio porque, à época, a família passava por necessidades, devido à prisão de Adriano por um auto de resistência.

O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) detectou que foi movimentado R$1,2 milhão nas contas de Queiroz, advindos de depósitos feitos por outros funcionários tanto de Flávio quanto de Jair Bolsonaro. Além disso, o Coaf apontou um depósito de R$24 mil realizado por Queiroz na conta de Michelle Bolsonaro – que, segundo o presidente, referia-se ao pagamento de um empréstimo – e 48 depósitos de R$2 mil na conta de Flávio Bolsonaro.

Quando estorou o escândalo do relatório do Coaf, Queiroz procurou abrigo em Rio das Pedras, local dominado pela milícia da qual fazia parte Adriano da Nóbrega. Depois de não comparecer em duas audiências nas quais era esperado para prestar esclarecimentos ao Ministério Público, Queiroz deu entrevista ao SBT, revelando que estaria com câncer. Pouco tempo depois, internou-se no Hospital Albert Einstein para se submeter a uma cirurgia.

Da mesma forma que as movimentações financeiras na conta de Fabrício Queiroz não são compatíveis com sua renda de policial reformado somada à de assessor parlamentar, a internação no hospital mais caro do país também não foi explicada até o momento. Negando qualquer ligação com a milícia, o ex-assessor nada declarou sobre sua estada em Rio das Pedras.

Além de Queiroz, sua filha foi funcionária de Flávio Bolsonaro entre 2007 e 2016. Exonerada, foi, menos de uma semana depois, nomeada como secretária parlamentar de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados em Brasília. Durante o período, Nathalia Queiroz atuava como personal trainer no Rio, apesar de o gabinete atestar sua presença em Brasília. Curiosamente, ela foi dispensada do cargo em outubro de 2018, no mesmo dia em que seu pai foi demitido do gabinete de Flávio.

No relatório do Coaf, Nathalia é citada duas vezes, por ter realizado a transferência de R$84 mil para a conta de seu pai. Vale mencionar ainda que a esposa de Queiroz, Márcia Oliveira de Aguiar, e sua outra filha, Evelyn Melo de Queiroz, também já trabalharam como funcionárias de Flávio. Evelyn foi nomeada para ocupar o cargo da irmã, Nathalia, precisamente quando esta passou a trabalhar em Brasília.

Tendo ficado por mais de dez anos como funcionário de Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz parecia ter, de fato, uma relação de amizade com toda a família. Segundo reportagem do G1, Fabrício se tornou amigo de Jair Bolsonaro ainda nos anos 1980.

O próprio Jair Bolsonaro disse, em entrevista ao SBT, saber que Queiroz "fazia rolo", sem fazer maiores especificações.

E, aproveitando a temática "rolo", a Folha de S. Paulo investigou um deles, referente a uma van que era de propriedade do agora presidente. O veículo, avaliado em R$89, aparece desde 2006 nas declarações de bens de Bolsonaro. Contudo, a van foi vendida ao ex-militar Jaci dos Santos por apenas R$10 mil em 2016, quando este trabalhava também no gabinete de Flávio Bolsonaro, no qual esteve de março de 2012 a dezembro de 2016, como um tipo de "faz-tudo".

Antes de ir para a Alerj, Jaci dos Santos esteve por cerca de um mês como funcionário do gabinete do próprio Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados, como parte de sua assessoria no Rio de Janeiro. Ele dirigia as vans que levavam Bolsonaro e os filhos durante a campanha, para fazer panfletagens.

Tendo comprado a van no final de 2016, Jaci retificou os documentos em fevereiro de 2017, pouco mais de um ano antes de Bolsonaro ter apresentado sua declaração de bens ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Jaci foi aluno de Jair Bolsonaro em 1984, na Brigada Paraquedista e, desde então, nutre uma relação de amizade com o político. Ele estava no barco com Bolsonaro em Angra dos Reis quando, em 2012, o Ibama os autuou por pesca ilegal. O outro parceiro de pescaria envolvido no episódio é Edenilson Garcia, irmão de Walderice Santos da Conceição, que ficou conhecida como "Wal do Açaí" e é suspeita de ter sido empregada por Jair Bolsonaro como funcionária fantasma.

Se, como vimos na primeira postagem, a família de Bolsonaro sempre se empenhou em defender militares e policiais mesmo que estes estejam envolvidos com atividades criminosas, os acontecimentos nos mostram ainda que, pelo menos tangencialmente, o clã de políticos acabou se relacionando ou com milicianos ou com amigos de milicianos. Mesmo que os Bolsonaro não soubessem de todas essas relações, trata-se de uma abertura perigosa, pois permite que tais grupos criminosos possam rondar e até mesmo vigiar o que ocorre nas esferas oficiais do poder.

terça-feira, 19 de março de 2019

Lesbocídio no Brasil: casos crescem 237% em apenas 3 anos


Analisando a história do movimento LGBT no Brasil, é possível notar que alguns grupos normalmente recebem mais atenção que outros. Quando se levanta o problema da homofobia, coloca-se sob um mesmo guarda-chuva as violências sofridas por lésbicas, gays, bissexuais e até mesmo pessoas transgêneras.

Em 2018 foi lançado o primeiro dossiê sobre o lesbocídio no Brasil, uma iniciativa do grupo de pesquisa Lesbocídio – As histórias que ninguém conta, formado pelo Núcleo de Inclusão Social (NIS) – projeto de extensão vinculado à UFRJ – e o coletivo Nós: dissidências feministas. 

O grupo de pesquisa foi criado em 2017, com suas atenções voltadas para uma violência bastante específica e, até então, pouco investigada em suas peculiaridades: a lesbofobia e, em especial, o lesbocídio, que é o assassinato de lésbicas tendo a discriminação/o preconceito/o ódio como uma das motivações.

Aqui, é importante esclarecer um equívoco normalmente levantado por pessoas que criticam declarações sobre assassinatos serem motivados por homofobia, lesbofobia ou transfobia, alegando questões situacionais como causadoras de assassinatos, e não o preconceito. Quando falamos em ódio ou discriminação como motivos para agressões ou homicídios, não ignoramos a causa determinada e circunstancial. 

Pensemos em uma situação hipotética: uma mulher lésbica se recusa a sair com um homem e, por este se mostrar muito insistente, ela acaba por ofendê-lo publicamente, em um bar. Sentindo-se humilhado, o homem assassina a mulher. O que pessoas contrárias à "bandeira da homofobia/lesbofobia" dirão é que o homicídio foi causado porque o indivíduo se sentiu humilhado, rebaixado, ferido e, num rompante de impulsividade, matou aquela mulher que o ofendeu. Esse tipo de argumento ignora o plano de fundo em que se insere todo o ocorrido, que é justamente a lesbofobia e o fato de que mulheres não têm o direito de dizer "não" a homens.

Infelizmente, é recorrente que lésbicas enfrentem violências em que o machismo, a misoginia e o heterossexismo apareçam interseccionados – isso quando não há, ainda, no caso de lésbicas negras, o racismo. Assim, a atração entre mulheres é tratada como fruto de alguma frustração sexual, como mero fetiche, como se duas mulheres ficassem juntas apenas para chamar a atenção de outros homens e, não raro, o que causa a indignação e a violência por parte dos agressores é o fato de que não são desejados ou de que são "rejeitados" pelas lésbicas.

O fenômeno do estupro corretivo é um dos mais cruéis ao refletirmos sobre a violência lesbofóbica, pois expõe o quanto a mulher não pode exercer sua sexualidade e dispor de seu corpo sem incluir o homem. A ideia de que o pênis – visto como o falo, símbolo de poder – deve ser a única fonte de satisfação sexual para as mulheres é compartilhada ao ponto de acreditarem que, com o estupro, ou seja, com a penetração à força, as lésbicas serão "corrigidas" e se tornarão heterossexuais.

De acordo com o Dossiê sobre lesbocídio no Brasil, em 2014 foram contabilizados 16 mortes de lésbicas no país. O documento inclui também os suicídios. A maior parte dos assassinatos foi cometida por ex-parceiros das namoradas das vítimas, dado que reforça a noção, socialmente disseminada, de que mulheres não têm o direito de rejeitar homens.

Quando a mulher termina um relacionamento e, em seguida, passa a namorar outra mulher, o sentimento de humilhação do indivíduo é somado ao da incapacidade: na cabeça desses agressores, eles não foram tão incapazes de satisfazer suas mulheres que elas passaram a se relacionar com outras mulheres. Até hoje, essa é uma interpretação recorrente e até mesmo fomentada pela sociedade.

Em 2015, houve um aumento de mais de 62% em relação ao ano anterior, sendo contabilizadas 26 mortes. Mais uma vez, os assassinatos motivados por ódio prevalecem. Em um dos casos, a vítima morta pelo ex-parceiro da namorada, à época, tinha apenas 15 anos de idade.

No ano de 2016, foram registradas 30 mortes. Desses casos, 67% compreende mulheres de até 24 anos de idade. Outro dado revelador é o de que 69% dessas mulheres eram "não-feminilizadas".

Em 2017, o registro foi de 54 mortes, uma grande escalada desde o início das pesquisas, com um aumento de mais de 80% em relação ao ano anterior. Dos casos, 32%, ou seja, 19 deles, foram de suicídio, o maior número contabilizado até então. Repetindo a tendência, 54% das mulheres eram "não-feminilizadas".

O incômodo causado por lésbicas que não se encaixam no padrão de feminilidade imposto pela sociedade é um fator que potencializa a discriminação sofrida pela mulher homossexual. A aparência "masculinizada" é lida, pelo senso comum, como um desejo de "se tornar homem" ou de ocupar o lugar do homem, de forma que essa lésbica passa a representar uma ameaça à ordem heterossexual.

Sobre essa questão, é ainda importante ressaltar que muitos homens transexuais são tidos também como lésbicas masculinizadas, tendo sua identidade negada e estando igualmente sujeitos a violências hediondas por romperem com a matriz de sexo-gênero-desejo imposta pela sociedade.

Com a ajuda de movimentos lésbicos que se uniram à iniciativa, é certo que os números contabilizados para 2018 e 2019 serão consistentemente maiores. Em entrevista para o G1, as pesquisadoras do grupo afirmaram que, até agosto de 2018, haviam sido registrados 110 casos.

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Para conhecer mais sobre o projeto:
Dossiê sobre lesbocídio no Brasil (relatório completo em ".pdf")
Dossiê sobre 'lesbocídio' aponta que SP é o estado que mais registra morte de lésbicas
Entrevista para o site M de Mulher

quarta-feira, 13 de março de 2019

Marielle, milícias, Rio de Janeiro e os Bolsonaros: o que tem a ver? - Parte 1

Da mesma forma que não é fácil escrever este texto, deixo avisado que ele não será fácil de ler.
Na postagem anterior, eu mencionei uma política da exaustão em curso e, agora, vou tentar articular sobre como isso tem funcionado para pessoas que vêm acompanhando a realidade política do Brasil e, ainda, estabelecer algumas ligações com as últimas notícias. É difícil dar conta de todas as informações sem ter uma pane mental.

Em primeiro lugar, é preciso falar, mais uma vez, da ideia de "estado de exceção". Já em 2003, Giorgio Agamben apontava sobre como ele havia se tornado regra, retomando uma das teses de Walter Benjamin (1942) sobre o conceito de História, em que aborda a "tradição dos oprimidos". Certamente, a reflexão benjaminiana sofreu influência direta do espaço e do tempo em que estava vivendo: a Segunda Guerra Mundial.

Nas décadas posteriores talvez fosse mais difícil enxergar essa exceção como regra, mas muitos de nós a percebem claramente agora, nesta contemporaneidade que vai ganhando moldes cada vez mais assustadores.

Um fato que pode ajudar a reforçar essa constatação, aqui no Brasil, é de que o livro Elite da Tropa, de autoria de Luiz Eduardo Soares, André Batista e Rodrigo Pimentel, teve sua primeira edição lançada em 2005. Nele, há um importante registro do governo paralelo do Rio de Janeiro exercido pelas milícias.

O que estamos descobrindo, enfim, é que de fato as milícias ocupam posições importantes e têm ligações com políticos diversos. Se pesquisarmos mais a fundo, veremos que se trata de uma espécie de prolongamento do regime militar no país, quando a corrupção não era conhecida do público, mas acontecia com o envolvimento de policiais e militares. Sobre este tema, vale a pena conferir o livro Os porões da contravenção, escrito por Aloy Jupiara e Chico Otávio.

Em segundo lugar, não podemos nos esquecer de que ocupa a presidência um político de carreira. Eleito pela primeira vez em 1988 para o cargo de vereador da cidade do Rio de Janeiro pelo Partido Democrata Cristão, hoje extinto, candidatou-se a deputado federal logo em 1990. Foram 6 reeleições, perfazendo 28 anos, até sua eleição como presidente.

O discurso político de Jair Bolsonaro sempre teve como ponto central a defesa do militarismo e da belicosidade. Para além de declarações favoráveis ao regime militar e às práticas governamentais da referida época, o presidente é fã assumido de Carlos Alberto Brilhante Ustra, notório torturador condenado em 2008 pela 23ª Vara Cível de São Paulo.

Em 2003, Jair Bolsonaro chegou a defender grupos de extermínio que atuavam na Bahia, em discurso na Câmara dos Deputados. A bem da verdade, ele não foi o único político a elogiar a atuação de grupos paralelos na ausência de segurança garantida pelo Estado. Foi, inclusive, essa visão positiva das milícias como protetoras do "cidadão de bem" refém de criminosos um dos fatores que culminaram na eleição do atual presidente.

No mesmo ano de 2003, Flávio Bolsonaro, então deputado estadual no Rio de Janeiro, concedeu a Medalha Tiradentes, considerada a maior honraria do estado, a Adriano da Nóbrega, ex-capitão do BOPE. No ano seguinte, foi prestada uma homenagem ao major Ronald Paulo Alves Pereira, também por Flávio, na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Ambos são parte da milícia que atua no Rio de Janeiro.

Em 2005, Jair Bolsonaro, em pronunciamento na Câmara dos Deputados, pediu ajuda de Denise Frossard, então deputada federal e ex-juíza criminal, para reverter a condenação de Adriano da Nóbrega, condenado a 19 anos e 6 meses de prisão pela morte de Leandro dos Santos Silva. Leandro, guardador de carros, foi assassinado na favela Parada de Lucas, na Zona Norte do Rio. Segundo seus familiares, o jovem havia denunciado Policiais Militares que praticavam extorsão a moradores da comunidade.

Em 2007, em discurso, o deputado assinalou que as milícias têm uma atuação positiva, que causaria medo em defensores dos Direitos Humanos. Páginas de notícias chegaram a apontar a pretensão, pelo parlamentar, de elaborar um Projeto de Lei que legalizasse a existência da "polícia mineira" – gíria usada para designar as milícias. Em 2008, na CPI das Milícias – presidida pelo também deputado estadual Marcelo Freixo –, Flávio voltou a defender os grupos, posicionando-se contra a CPI e alegando que as organizações seriam uma consequência do descaso estatal.

Neste primeiro apanhado de informações, notamos que 1) existe uma tradição miliciana no Rio de Janeiro; 2) o clã Bolsonaro, que nunca escondeu seu posicionamento favorável ao uso de repressão e violência como métodos oficiais, defende há tempos a atuação de milícias como método de segurança paliativo e 3) com a eleição do atual presidente, cria-se um clima em que a atuação das milícias é não apenas facilitada, mas aplaudida.

quarta-feira, 6 de março de 2019

Bolsonaro e o governo pelos excessos


Os métodos de governo de Jair Bolsonaro não se diferem daqueles pelos quais ele venceu a eleição: divulgação de informações em excesso, sem preocupação com a veracidade e, preferencialmente, em tom alarmista. Os "inimigos" são vencidos pela exaustão, cansados de explicar o óbvio e de combater um exército de indivíduos que não se preocupam em demonstrar racionalidade mínima.

Nem o mais criativo dos escritores de ficção imaginaria uma distopia em que o presidente do país, usando o Twitter como meio de comunicação oficial, divulga, entre supostos feitos do governo, vídeos escatológicos e notícias falsas diversas. Narrativas que soam absurdas, como a da existência de um "kit gay" e de mamadeiras eróticas que seriam distribuídas nas escolas, teorias da conspiração, como a do "marxismo cultural" e da "ideologia de gênero", agora fazem parte do repertório de um chefe de Estado que ignora por completo a lei atrelada ao exercício do cargo.

Conforme a Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, o ato de "proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo" é um crime contra a probidade na administração, previsto no Art. 9º.

A publicação, pelo presidente, de um vídeo em que ocorre pornografia explícita, sem qualquer aviso ou indicação, foi feita com o intuito de denunciar o Carnaval como um período do ano em que atentados ao pudor são recorrentes. Contudo, mais uma vez, Bolsonaro se utilizou de uma exceção para tentar representar, de maneira distorcida, a regra.

Não defendo que um ato tão explícito seja feito na rua, à luz do dia, numa ocasião em que é possível que crianças o vejam. Mesmo que se trate de um protesto ou de uma provocação (afinal, o vídeo foi compartilhado sem qualquer informação sobre quando e onde foi gravado), o uso do sexo para uma performance, seja ela espontânea ou planejada, não deve acontecer a qualquer momento e em qualquer lugar. Ainda mais por estarmos vivendo em um período, no Brasil, em que qualquer manifestação do tipo pode ser usada contra nós (minorias sociais em geral e, no caso, mais especificamente contra LGBT+) a fim de que nossa luta se torne ainda mais questionada e deslegitimada.

Para além da falta de contextualização do vídeo, o que torna tudo mais grave é o modo como o presidente Bolsonaro não demonstra pudor algum ao compartilhar essas imagens. Além disso, por ser possível identificar as pessoas envolvidas no ato, é de se esperar até mesmo que ocorra o linchamento desses dois indivíduos, não apenas virtualmente – isso sem falar naquelas pessoas que, eventualmente, possam ser confundidas com eles, tornando-se alvo de violências também.

A eliminação dos indesejáveis é uma política típica do Estado de exceção. Com as manifestações de descontentamento com Jair Bolsonaro em múltiplos blocos por todo o país, o presidente se deu conta de que não conseguirá eliminar todos os "inimigos". Assim, seu desejo passa a ser o de impedir que aconteça uma festa em que a politização e a sátira a políticos como ele é recorrente. E, convenhamos, para os moralistas de plantão, acabar com o Carnaval seria orgásmico.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

MEC e doutrinação ideológica


O Ministério da Educação (MEC), comandado por Ricardo Vélez Rodriguez, eviou por e-mail um comunicado às escolas solicitando que alunos e funcionários sejam filmados, em fila, enquanto cantam o hino nacional, além de que se faça uma leitura de carta assinada pelo ministro.

Embora o ato de cantar o hino nacional não seja um problema, sendo prática de algumas escolas, o pedido encaminhado pelo MEC é problemático em diversos níveis – estudei por 5 anos em uma escola na qual era hábito que os alunos ficassem em fila para cantar o hino e ouvir uma acolhida, não tendo afetado em absolutamente nada o comportamento, muito menos o senso de civilidade dos estudantes que, se não existia, continuou não existindo.

O primeiro deles está em se filmar crianças e adolescentes sem autorização expressa dos responsáveis, o que é proibido por lei – e, a não ser que o MEC tenha, por escrito, uma declaração de cada responsável por cada menor de idade autorizando a referida filmagem, ele está agindo ilegalmente.

Segundo o Artigo 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8069/90): "O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais". No âmbito da Constituição Federal de 1988, a inviolabilidade da intimidade da privacidade de todas as pessoas também é garantida. Assim, além de ser necessária a autorização individual de cada responsável/tutor, o MEC precisa deixar claro o motivo pelo qual se está solicitando a filmagem, pois não se sabe para quais fins este material será usado.

Podemos inferir que o Ministério pretende elaborar propagandas políticas com as filmagens em questão. Contudo, o fato de dispor de imagens que identifiquem estudantes, professores e funcionários da educação de todo o país pode despertar algumas desconfianças em tempos em que vivemos sob um governo que se elegeu com a promessa de eliminar movimentos sociais e libertar o país "da submissão ideológica" (BOLSONARO, 2019).

A carta assinada por Rodriguez a ser lida nas escolas é um outro problema, pois demonstra o desconhecimento acerca da própria competência do MEC e do modo como correspondências oficiais devem ser feitas. Rodriguez é um representante do Ministério e não o contrário; a carta não pode ser assinada com seu nome, pois o órgão público não se resume em um único indivíduo. Trata-se de uma regra básica de impessoalidade da redação oficial e de um princípio da lei constitucional apontada no Artigo 37 da CF.

A finalização da carta com um slogan de campanha presidencial já finalizada – "Brasil acima de tudo. Deus acima de todos!" – traz um claro viés de doutrinação política e religiosa, ferindo o princípio constitucional da laicidade do Estado e de inviolabilidade da liberdade religiosa. Apesar de a maioria dos brasileiros acreditarem no Deus cristão, não se pode exigir que os cidadãos sigam uma crença específica.

Além disso, usar o slogan da campanha eleitoral de Bolsonaro em um comunicado oficial que parte de um Ministério é inconstitucional. Não obedecendo o princípio de impessoalidade, como já explicado – afinal está demonstrando a preferência política do ministro –, fere ainda outro parágrafo do Art. 37 da CF: "§ 1º A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos".

Até o momento, de fato, o ministro da Educação não demonstrou nenhuma ação efetivamente positiva que nos permita vislumbrar qualquer melhora na área. Acreditando em teorias conspiratórias, Rodriguez extinguiu a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) logo no início de seu mandato e tem apoiado uma bandeira de combate a uma doutrinação [inexistente] dentro das escolas.

A defesa de um ensino cívico-militar em escolas municipais, com experimentos iniciados em cinco unidades de Brasília, até o momento não veio acompanhada de uma busca pela melhora das condições de ensino mais básicas e que têm se mostrado mais precárias no país: infra-estrutura dos prédios, alimentação dos estudantes, salários e valorização de professores.

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Leituras adicionais e fontes deste texto:
1) MEC envia carta às escolas pedindo que crianças sejam filmadas durante execução do Hino Nacional
2) Juristas e educadores criticam pedido do MEC para execução de hino e leitura de carta com slogan de Bolsonaro
3) Constituição Federal, Art. 37
4) Artigo 17 do Estatudo da Criança e do Adolescente
5) Ministro da Educação fala sobre ideologia de gênero e Escola sem Partido

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Vídeo sobre outro comunicado do MEC em que o princípio de impessoalidade não foi observado, evidenciando o despreparo do atual ministro, além do uso de conspirações para abordar uma desavença pessoal com jornalista: