quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Nos trending topics, a ignorância escancarada


E eis que esta é a hashtag mais usada no Twitter de brasileiros:

Isso aconteceu em resposta a uma campanha lançada com a hashtag #SouFeministaPq, visando à discussão sobre problemas ainda hoje enfrentados pelas mulheres apenas por serem mulheres. Entre as motivações da luta feminista está o assédio constante sofrido por mulheres na rua - e do qual são culpadas porque "provocam" -, além do fato de que, no Brasil, ocorre 1 estupro a cada 11 minutos.

As mulheres precisaram lutar para ter o direito de votar, delegado ao homem desde sempre (exceto aos pobres), precisaram se manifestar para ter direito à educação e até mesmo para ter o direito de dizer "não" ao marido. Na sociedade vitoriana, por exemplo, a mulher não tinha direito às posses que dividia com o marido nem à guarda dos filhos; no caso de separação, tudo ia para o marido, independentemente de o bem ter sido herdado pela mulher.

As mulheres ainda não têm o direito de escolher se desejam ou não ter filhos - não interessa se quem passa por todo o processo físico da gravidez é ela - e porque engravidam recebem menos em seus empregos quando conseguem ser contratadas. Até hoje a mulher que não quer ser mãe é condenada.

Eu poderia falar mais sobre o feminismo, inclusive sobre a história da luta por igualdade de direitos, a qual acabou também por criar correntes diferentes de pensamento, levando à existência de feminismoS múltiplos. Deve-se lembrar, ainda, que feminismo não é o mesmo que ódio aos homens (ódio que pode até fazer parte de uma ou outra linha de pensamento, mas que não é uma regra) e que o desprezo pelo machismo vem de vidas inteiras sendo submetidas a essa dominação que coloca o homem como superior à mulher.

Quando, em resposta a uma campanha pelo feminismo, pessoas adotam uma hashtag do tipo #RolaNoRaboDasFeministas, fica evidente que a "rola" ou seja, o falo, ainda é um instrumento dominador. É como se a "rola" fosse capaz de fazer com que a mulher deixasse de ser feminista por meio da humilhação. Aliás, aqui se mostra outro pensamento machista: o de que uma pessoa sexualmente passiva é alguém menor que, por gostar de ser penetrada pela "rola" é uma espécie de masoquista.

Não é a feminista que sente repulsa pela "rola", mas o "macho" que é ensinado, desde pequeno, a orgulhar-se de sua "rola" e de demonstrar aversão pela "rola" alheia. Aliás, viris como são, esses "machos" não podem se sensibilizar com luta alguma, pois devem sentir orgulho também da própria ignorância e falta de empatia.


Desserviço: "imprensa" que distorce e não se informa


Após ter feito a cirurgia de redesignação genital em 2012 na Tailândia, Lea T. tem falado, em algumas entrevistas, sobre seu arrependimento.

Tendo passado por uma experiência ruim durante a recuperação, Lea T. repensou sua condição de mulher, afirmando que "ninguém vai virar mulher com a vaginoplastia". Essa fala é importante e deve ser destrinchada - e não distorcida como a imprensa vem fazendo.

Após a vaginoplastia, a modelo teve gangrena, certamente um trauma que a deve ter feito refletir muito. O que ela diz é que muitas trans procuram se tornar "mulheres completas" de acordo com os padrões impostos pela sociedade, que não aceita uma mulher trans que esteja satisfeita com seu corpo antes da redesignação genital.

Ao que parece, seu arrependimento foi o de ter procurado satisfazer esses padrões e, como ela disse de forma muito clara em entrevista à Oprah Winfrey: "Para mim foi um periodo intenso, de muita pressão sobre mim e minha vida. Fazer uma operação de mudança de sexo mudará uma parte de seu corpo. Uma parte realmente íntima do seu corpo, mas isso é tudo. Você não muda o seu cérebro, não muda os seus olhos, não se torna uma princesa após a operação.... Você continua a ser a mesma pessoa. Quando acordei (da cirurgia), ainda era eu mesmo, gostava das mesmas coisas".

É interessante notar como a fala de Lea expõe a pressão que todas enfrentam pela sociedade e como isso influencia em grande parte as decisões de uma pessoa. Normalmente, ninguém procura se informar a fundo a respeito da transgeneridade antes de dar sua opinião - quase sempre equivocada e infundada - e vê no discurso agora proferido por ela uma justificativa para se posicionar contra a aceitação dos indivíduos trans.

Um exemplo é a matéria preconceituosa e rasa publicada no blog do Leo Dias, no jornal O Dia:

O texto do blog sugere que Lea T. está arrependida de ter "virado transexual" (entre aspas, afinal, ninguém "vira" trans, a pessoa É trans), como se quisesse "voltar" a ser do gênero masculino. Aqui, o discurso claramente confunde a experiência traumática de Lea e seu arrependimento de ter decidido pela redesignação com um arrependimento por ser quem é - este último, uma afirmação absurda.

Como se não fosse o suficiente, a matéria mistura gênero e sexualidade, como se uma mulher trans fosse, por associação, heterossexual. Isso reforça o que chamamos de "heteronormatividade", que apenas enxerga o comportamento hétero como norma e ignora outras orientações.

Uma mulher trans pode muito bem ser lésbica ou bissexual. E, reforçamos, Lea T. não se arrepende de ser uma mulher trans. Seu arrependimento está na decisão de passar por uma cirurgia bastante invasiva e delicada que fez com que ela ficasse muito tempo em recuperação - e que não alterou sua mente.

Seu caso não é exclusivo. Muitas mulheres que se submetem à vaginoplastia o fazem para se encaixar na sociedade e acabam se arrependendo depois porque o resultado é unicamente físico. Uma cirurgia não torna uma mulher realizada - e isso serve para todas. Há pessoas trans que não sentem a menor necessidade de passar por intervenções cirúrgicas e isso deve ser respeitado, pois sua realização não depende das modificações físicas.

As pessoas parecem incapazes de entender que existe uma gama muito ampla de expressões de feminilidade e masculinidade, e que nem sempre adequar-se ao que esperam de você é sinônimo de felicidade. Uma mulher trans é uma mulher, pois é essa sua identidade. O que ela fará em seu corpo para expressar essa identidade é uma escolha que só cabe a ela.