quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Como o islã vê a transexualidade?

A islamofobia é um problema real. Porque encaramos a sociedade islâmica a partir de nossas concepções cristãs-ocidentais, restringimos nossa visão e nos pautamos apenas nas notícias por aqui veiculadas - a maior parte delas tratando somente de guerras e ações terroristas.

Como é o caso de todas as religiões, o islã também apresenta segmentos fundamentalistas, alguns tendo se tornado conhecidos por seu radicalismo e violência. Mas não se pode dizer que são eles os representantes dos indivíduos muçulmanos, os quais correspondem a cerca de 23% da população mundial. São, antes, uma minoria.

Em termos de governos no poder em países de maioria muçulmana, de fato, predomina o conservadorismo. Política e religião estão intimamente ligadas na maior parte dos países de maioria islâmica e muitas das leis instituídas encontram suas justificativas exclusivamente nos ensinamentos sagrados.

A homossexualidade ainda é considerada um crime em diversos países islâmicos, podendo ser punida com a morte na Arábia Saudita, Sudão, Somália, Mauritânia e Irã. Em outras nações, por sua vez, há certa tolerância, como no caso do Egito, Tunísia, Indonésia, Albânia, Turquia etc. Porém, mesmo nesses países a discriminação contra homossexuais é recorrente, vindo com a não aceitação da família e, por vezes, o assassinato.

Curiosamente, apesar da condenação da homossexualidade, os tratamentos dispensados a transexuais são, por vezes, de relativa aceitação - não quero dizer que pessoas trans são bem tratadas ou totalmente aceitas, mas que a transfobia pode ser mais amena em algumas das nações muçulmanas.

Um caso interessante é o do Irã, que permite a cirurgia de redesignação genital desde 1983, após o líder islâmico, aiatolá Khomeini, passar uma fatwa (pronunciamento legal no Islã emitido por uma autoridade religiosa) permitindo a operação aos "diagnosticados como transexuais".


O governo ajuda a pagar pelas cirurgias pois considera a transexualidade uma doença que pode ser curada, usando como argumento o fato de a condição não ser mencionada no Alcorão, nem considerada como um pecado - diferentemente da homossexualidade, que é encarada como um comportamento imoral e condenável segundo o livro sagrado.

O fato de o país permitir a cirurgia também não significa que haja uma liberdade de escolha para pessoas transgênero: passar pelas operações são uma necessidade para que o indivíduo se encaixe na sociedade como alguém "normal". Aqueles ou aquelas que não passam pela transição e pela cirurgia são considerados disruptivos, enganadores, pois dizem ser portadores da "doença" mas rejeitam sua "cura". Seu comportamento é visto como um pecado porque rompe com a ordem e a organização social.

Há outras questões ainda mais complexas no que diz respeito à permissão para que sejam realizadas cirurgias de redesignação e à suposta aceitação de transexuais no Irã. A primeira delas tem a ver com a precipitação que pode acometer algumas pessoas que, sentindo-se "diferentes", logo buscam a operação - afinal, quando a homossexualidade é veementemente condenada, qualquer homem que se sinta "efeminado" ou mulher "masculinizada" pode encarar o diagnóstico de transexualidade e posterior transição como uma maneira de se obter melhor qualidade de vida ou mesmo de sobreviver num país onde ser gay é crime capital.

A segunda questão está no próprio reforço da normatividade, quando ainda se busca ter controle sobre o corpo de cada cidadão. Se, por um lado, permite-se a transição, por outro, não se trata de uma escolha ou de um apoio à diversidade. Na verdade, essa permissão trabalha a favor de uma uniformização do gênero por meio da qual transexuais são apoiados a fim de se encaixarem na sociedade que visa à manutenção da ordem.

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Documentário: "Transexual no Irã (Ser como os outros)"

Disciplina excessiva e suicídio: o que não falam sobre o Japão


Quando falamos em benefícios da disciplina, frequentemente usamos o Japão como exemplo a ser seguido. O país cultua uma imagem de organização e eficiência que desperta a admiração de todo o mundo e povoa os desejos dos mais conservadores, que sonham com uma sociedade igualmente disciplinada e organizada.

No entanto, a cultura japonesa é muito mais complexa do que nosso senso comum é levado a crer e, por trás dessa perfeita disciplina há fatores extremamente sérios envolvendo, inclusive, um número alto de suicídios até mesmo entre crianças.

Entre os anos de 1973 e 2012, mais de 18 mil crianças cometeram suicídio; em 2014, essa foi considerada a primeira causa de morte entre os jovens de 10 a 19 anos de idade. Os períodos em que a taxa é mais alta são durante a volta às aulas.

Nas escolas japonesas, não há espaço para individualidade e criatividade; desde muito pequenas as crianças começam a aprender matérias como inglês e matemática, além de assistirem aulas extras para conseguirem entrar nas melhores instituições. A competitividade que pressiona os alunos e requer dedicação estrema leva também ao bullying que é, por vezes, encorajado pelo comportamento dos professores ao punirem os alunos

Há jardins de infância - mais rígidos, considerados os melhores - em que os uniformes das crianças consistem apenas de shorts, sem camisa ou blusa que aqueçam os pequenos alunos durante o frio, uma forma de os tornarem resistentes ao clima gelado. É comum, por exemplo, que estudantes assistam aulas até meia-noite já no primeiro ano na escola.

Em sua maioria, pedagogos japoneses não acreditam que uma criança possa ser criativa, apenas espontânea e qualquer excentricidade deve ser desencorajada. O sistema de ensino autoritário acaba por suprimir as emoções dos alunos, não interessa o quão jovens sejam. Assim, o bullying passa despercebido simplesmente porque estudantes não devem relatá-lo, mas aprender a conviver com ele. Ademais, não existem políticas educacionais para inclusão de autistas ou indivíduos com dificuldades de aprendizagem.

O que se observa, em suma, é que a disciplina que consideramos exemplar é obtida às custas da própria humanidade das pessoas desde pequenas. A importância de se manter as aparências faz com que seja condenável falar o que se pensa; a separação da vida íntima e pessoal da vida social deve ser preservada por todos. Em casa, os filhos têm pouco contato com os pais, que se tornam workaholics - em função da competitividade - e se deparam com as exigências das mães para que sejam também bem sucedidos.

Outra consequência do sistema educacional japonês é o aumento da violência cometida por jovens que, devido à pressão, tornam-se agressivos. O número de adolescentes que, transtornados, recorrem a crimes violentos como forma de reagir contra o sistema vem aumentando desde 2002 e, em resposta, estima-se que cerca de 1 milhão de jovens vivam reclusos em suas casas. Eles o fazem por exigência da própria família, envergonhada pelo filho incapaz de ser bem sucedido; outros, acreditando terem falhado em seu dever para com a sociedade, seja por não apresentarem um bom desempenho na escola ou por não conseguirem um bom emprego, entram em reclusão ainda na adolescência por vontade própria - são os chamados "hikkikomori".

As estatísticas têm alarmado o governo japonês, que busca formas de reinventar sua cultura educacional com medidas como o fim das aulas aos sábados ou a redução das notas exigidas nas universidades.

Quando uma pessoa defende uma educação regida por militares, mirando-se no exemplo japonês, ela não leva em conta especificamente o fator humano e a que custo se mantém uma cultura disciplinar. Nesse tipo de sistema um ensino bem sucedido depende de um adestramento que ignora por completo as subjetividades - e essas pessoas vão tentar dar vazão a essas necessidades subjetivas de outras formas, o que pode ter um efeito negativo na sociedade como um todo.

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Leituras recomendadas:
Documentários (em inglês):