sábado, 23 de julho de 2016

Ministério Público Federal afirma que projeto "Escola Sem Partido" é inconstitucional



A tentativa de cercear a liberdade docente, por meio da restrição de como professores e profissionais da educação devem agir, vem acontecendo já há algum tempo e, no dia 17 de julho, o Senado lançou uma consulta popular através do portal e-Cidadania a respeito do Projeto de Lei 193, de autoria do senador Magno Malta (PR-ES), integrante da bancada evangélica, que inclui o programa que ficou conhecido como "Escola Sem Partido" na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Há ainda um Projeto de Lei tramitando na Câmara, de autoria do deputado federal Izalci Lucas (PSDB-DF), o PL 867/2015.

Em nota técnica, encaminha na sexta-feira, 22 de julho, ao Congresso Nacional, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal (MPF), aponta a inconstitucionalidade do Projeto 867/2015.

Deborah Duprat, procuradora federal dos Direitos do Cidadão e redatora da nota, escreveu que o projeto "nasce marcado pela inconstitucionalidade", justificando que o artigo 205 da Constituição Federal coloca, como objetivo primeiro da educação, o pleno desenvolvimento das pessoas e a sua capacitação para o exercício da cidadania - o que envolveria a abordagem de temas socioculturais, do respeito às diferenças e o estímulo à participação ativa na promoção de melhoras para a sociedade de maneira geral. "Essa ordem de ideias não é fortuita. Ela se insere na virada paradigmática produzida pela Constituição de 1988, de que a atuação do Estado pauta-se por uma concepção plural da sociedade nacional. Apenas uma relação de igualdade permite a autonomia individual, e esta só é possível se se assegura a cada qual sustentar as suas muitas e diferentes concepções do sentido e da finalidade da vida", afirmou Duprat.

A nota argumenta ainda que o Escola sem Partido coloca o professor "sob constante vigilância, principalmente para evitar que afronte as convicções morais dos pais", além de confundir a educação escolar com aquela que é dada pelos pais, misturando o público e o privado de forma danosa.

À primeira vista, o projeto dá a impressão de se tratar de uma busca por melhoras no sistema educacional, de forma a impedir uma doutrinação ideológica em sala de aula, algo bastante válido se encararmos a proposta isoladamente. Contudo, o texto contém uma série de incoerências que ficam ainda mais evidentes quando levamos em conta o posicionamento dos defensores da chamada "Escola Sem Partido".

Um grande problema, que o movimento em questão ignora, está no fato de muitos políticos o defenderem justamente para fazer valer seu próprio viés ideológico.

De acordo com o PL 867/2015, ficaria estabelecido que:

Art. 2º. A educação nacional atenderá aos seguintes princípios:
I - neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado;
II - pluralismo de ideias no ambiente acadêmico;
III - liberdade de aprender, como projeção específica, no campo da educação, da liberdade de consciência;
IV - liberdade de crença;
V - reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação de aprendizado;
VI - educação e informação do estudante quanto aos direitos compreendidos em sua liberdade de consciência e de crença;
VII - direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.
Art. 3º. São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes.
A noção de neutralidade é, de fato, interessante, no entanto, o texto ignora completamente que algumas discussões ideológicas são necessárias para a formação crítica do pensamento e que, para fomentar o debate e estimular o aluno a formar sua própria opinião acerca de um assunto é preciso ensinar a respeito de correntes ideológicas e crenças - afinal, a única maneira de o indivíduo se posicionar contra uma linha de pensamento é conhecendo o que é pregado por ela.

Ademais, a abordagem de questões importantes como a desigualdade de gêneros, a homofobia, o racismo e o que leva às discrepâncias entre classes sociais e econômicas tem sido encarada como "doutrinação" a partir de uma distorção deliberada dos discursos de educadores e estudiosos desses temas.

Ainda conforme o projeto, o professor:
I - não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para esta ou aquela corrente política, ideológica ou partidária;
II - não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas;
III - não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas;
IV - ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito;
V - respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções;
VI - não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de terceiros, dentro da sala de aula.
Ora, se ao professor cabe apresentar "as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes", é necessário que ele aborde a necessidade, por exemplo, de trabalhadores participarem de manifestações e procurarem sindicatos para que tenham seus direitos garantidos.

É perigoso também que não haja uma delimitação precisa, no projeto, do limite entre expressão de opiniões e a tal doutrinação, o que pode levar um professor a ser legalmente processado simplesmente por divergir de um ponto de vista e expor seus argumentos em sala de aula, o que é bastante diferente de apresentar fatos de maneira parcial.

O projeto trata ainda do respeito às convicções dos pais dos alunos sem, contudo, estabelecer parâmetros que reconheçam a capacidade do educador a partir de sua formação. Para que os pais se oponham à ação do professor, eles precisam compreender o processo pedagógico e as motivações, já explicadas, do motivo de certos assuntos serem abordados em sala de aula.

Porém, o que temos visto com bastante frequência são pais que, sem acompanharem a vida escolar dos filhos, apenas procuram intervir quando lhes parece conveniente - e, sabemos, para os pais é bastante conveniente que seus próprios filhos não questionem suas crenças, algo que os jovens são capazes de fazer independentemente da função do professor, que acaba levando a "culpa" por dar ao filho um instrumento poderoso que é a argumentação.

Em maio, o MEC já havia se posicionado contra essa movimentação que tem acontecido para se controlar o ensino, mas uma reunião recente entre o presidente interino Michel Temer e uma comitiva de pastores levou o governante a se comprometer com a revisão da atuação do MEC, mostrando-se favorável a essa grupo que procura basear a educação em seus preceitos religiosos e moralistas.

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