quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Pequenos detalhes que importam muito

(ilustração: Daniel Bueno, junho de 2013, para a Folha de S. Paulo)

Antes de expor minha crítica, gostaria de parabenizar a atitude da mãe Mariana Munhão e sua coragem ao dar um depoimento sobre a história do filho.

A pessoa que se assume trans passa por sofrimentos e conflitos imensuráveis, e o apoio da família e dos amigos é crucial para que se sintam bem no próprio corpo - um corpo que, de certa forma, os engana desde o nascimento. Somente o sujeito trans conhece e experiencia a própria dor. Mas quem o acompanha de perto, o ama e se preocupa com ele, também passa por seus dilemas, principalmente quando são indivíduos muito próximos, como os pais e os irmãos.

Às vezes, por mais que nos esforcemos para demonstrar apoio, compreensão e uma mente aberta, escorregamos em palavras e expressões que reforçam nosso apego ao chamado determinismo biológico - a crença de que a aparência de seus genitais e seu provável fenótipo é o que determina seu "sexo".

O relato de Mariana Munhão é profundo e serve como um ensinamento a muitos pais. Contudo, não posso deixar de expressar meu incômodo com a "frase de impacto" escolhida pela jornalista Gabriela Varella, que tomou o depoimento, para usar como chamada ao texto.

Da perspectiva de uma mãe, que viu o filho nascer com aspectos que fizeram com que ele fosse interpelado como "filha", é de se compreender que a sensação é a de uma garota que "virou" garoto - afinal, se desde o nascimento até a descoberta da transgeneridade Luan foi designado como menina, tem-se mesmo a impressão de uma pessoa se tornar outra, ao menos fisicamente.

Porém, quando a imprensa dá destaque a essa frase, "Não é fácil acordar e saber que sua filha virou filho", ela promove o reforço de uma ideia equivocada, que vem sendo propagada há muito e que é, em partes, responsável pela maneira discriminatória com que a sociedade enxerga as pessoas trans.
Ora, a filha não virou filho; "ela" sempre foi filho, "ela" se sentiu filho desde que pôde compreender sua identidade e compará-la com a de outras pessoas.

A pressão da família é a primeira de muitas enfrentadas pela pessoa trans. A pressão da escola, que evita tratar de questões de gênero e sexualidade - e agora ainda tem proteção de vereadores para que esses assuntos não sejam abordados -, vem em seguida e é quando o indivíduo pode realmente entender o que lhe espera na sociedade.

A criança cis - aquela que não questiona o gênero que lhe foi designado ao nascer - se certifica de sua identidade de gênero muito cedo e tem o aval dos pais para expressar como se sente, de acordo com essa identidade, pois está dentro das nossas expectativas sociais e culturais. A criança trans, por sua vez, é desencorajada pelo mesmo sistema, que a avalia como confusa - ou até como alguém com tendências homossexuais - e como incapaz de saber qual sua identidade de gênero tão cedo (veja bem, ninguém faz o mesmo questionamento a uma criança cis, aplaudida por reafirmar sua identidade diariamente).

Um estudo publicado em janeiro de 2015 mostrou que crianças trans demonstram suas identidades de gênero com a mesma consistência que crianças trans. Isso indica que, da mesma forma que a criança cis sabe qual é sua identidade de gênero, a criança trans também sabe de sua identidade "desviante", e elas são capazes de ter essa certeza desde os 5 anos de idade.

Ou seja, a criança trans não quer "virar" alguém do outro gênero, ela já se sente como alguém do outro gênero, mas precisa mostrar ao mundo esse sentimento e depende de outras pessoas - principalmente seus pais - para que ele seja validado. É a partir daí que entram as expressões de gênero associadas ao que é normalmente considerado masculino ou feminino. Para demonstrar sua transgeneridade, a criança passará a agir como as outras pessoas do gênero com o qual se identifica.

O problema do discurso que afirma que "é muito cedo para saber" tem a ver com uma ignorância voluntária por parte das pessoas, que usam essa justificativa somente quando o comportamento da criança não é o que se esperava. Afinal, para o garotão que nasceu com "o saco roxo" e adora ir para o colo de mulheres, nunca vai ser "muito cedo para saber" que ele é um macho heterossexual!