domingo, 26 de julho de 2015

Existiram índios homossexuais?


Não podemos dizer, especificamente, que existiram índios homossexuais na História do Brasil porque os índios não conheciam, muito menos usavam o conceito de “homossexual”, identidade que apenas foi cunhada no século XIX. Isso não significa, contudo, que não existia a prática do sexo homossexual nas tribos, como é o caso também de identidades de gênero para além do binômio homem-mulher ao qual a sociedade ocidental dita civilizada se acostumou.

Na verdade, há um número considerável de evidências de que a homossexualidade era uma prática socialmente aceita entre índios de diversas tribos. Além do mais, deve-se ter em mente que comportamentos e identidades não-heterossexuais entre índios não podem ser analisadas unicamente a partir de nossas concepções heteronormativas, uma vez que se tratam de sociedades diferentes, com experiências, vivências, crenças, simbologias, significados, interpretações, pontos de vista, rituais e pudores diferentes.

É notável a abundância de termos usados em tribos indígenas por toda a América para se referir a indivíduos que, de alguma forma, poderiam hoje ser classificados como LGBTTIQ a partir de nossa perspectiva.

À época da colonização da América Latina, no século XVI, viajantes europeus relataram a presença de índios e índias sodomitas no Novo Mundo (“sodomia” era a palavra usada para se referir a qualquer prática sexual “não-natural”, incluindo homoerotismo, sexo anal, oral etc.). Esses atos eram vistos pelos colonizadores como pecaminosos e selvagens, e junto com a catequização dos nativos vieram também as tentativas de apagamento do histórico dessas práticas.


Em sua extensa pesquisa, o antropólogo Dr. Luiz Mott menciona como até mesmo grandes civilizações, dentre elas os Maias e os Astecas, permitiam determinadas práticas e comportamentos, como o homossexo e o travestimento entre homens (apesar de condenarem outras).

A relação entre a prática homossexual e o xamanismo também esteve presente desde tempos imemoriais. Muitos já ouviram falar dos two-spirit norte-americanos, nativos que transitavam entre os gêneros e que, segundo a crença, eram detentores de grandes poderes e dons, justamente por carregarem ambos os espíritos masculino e feminino. A existência dessas pessoas foi documentada em cerca de 155 tribos espalhadas por toda a América do Norte.

No Brasil, a diversidade dos papéis de gênero também existiu, a exemplo dos tibira (que seriam os índios “gays”) e das çacoaimbeguira (as índias “lésbicas”), entre os Tupinambá. As çacoaimbeguira foram descritas como índias extremamente masculinizadas, que exerciam funções usualmente delegadas aos homens, vivendo com uma mulher que as servia como se fossem homens, além de exibirem os tradicionais cortes de cabelo masculinos.

Entre os índios Guaicuru e Xamicos, existiam os cudinhos, que adotavam vestes e adornos femininos e serviam a seus maridos como se fossem mulheres.

Entre os Kadiwéu, o hábito da pintura corporal é reconhecido como uma arte feminina. Os complexos padrões da tribo são pintados pelas mulheres mais velhas e pelos kudína, homens efeminados que incorporavam todos os atributos da mulher e assumiam papéis femininos naquela sociedade.

Segundo Luiz Mott (1994), em tempos de Inquisição, foi justamente a maior liberdade sexual e a nudez entre índios e entre escravos (a questão da “homossexualidade” nas tribos africanas merece um texto à parte), entre outros fatores, que possibilitaram aos sodomitas europeus um espaço privilegiado na colônia para suas práticas homoeróticas.

Em dias de fundamentalismo e conservadorismo como estamos vivendo, alguns podem tentar justificar a não aceitação da homossexualidade usando como justificativa que não há histórias de "índios homossexuais", sendo eles o supra-sumo da moralidade e da inocência por conta de sua condição como "selvagens". De fato, não houve "índio homossexual", mas houve homossexualidade entre os índios, desde sempre.

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Sugestões de leitura:

sábado, 18 de julho de 2015

Globo e, como sempre, o jornalismo tendencioso

Desta vez, a demonstração de um jornalismo irresponsável veio do programa "Bem Estar", em matéria sobre uso de brincos, riscos e cuidados, que foi ao ar na sexta-feira, 17 de julho.

Comecemos pelos "especialistas" consultados: uma dermatologista e um cirurgião plástico.
Primeiramente, são duas especialidades médicas que não vão lidar, diariamente, com o procedimento da perfuração, muito menos com tudo o que está por trás do uso de adornos corporais. Sabemos que as pessoas apenas procuram esses médicos em casos de problemas com suas perfurações.
Não é possível que, em momento algum, não passou pela cabeça dos produtores procurar o real especialista no assunto: o body piercer.

Felizmente, na página da matéria dois profissionais extremamente gabaritados já se manifestaram. Infelizmente, não acredito que quem deveria realmente ler seus comentários vão se dar ao trabalho.

O fato de que a dermatologista tem, entre suas funções, lidar com alergias da pele a substâncias diversas não significa, também, que ela entenda de todas as questões envolvidas na produção e distribuição de peças usadas para adornar o corpo. Basicamente, ela pode saber da presença de níquel em um "brinco", mas não acredito que ela tenha qualquer tipo de treinamento para identificar joias e peças específicas para serem aplicadas ao corpo - basta notar que, na matéria do programa, apenas mencionam que o recomendável para quem tem alergia é o "brinco de ouro".

A matéria falha em mencionar qualquer questão relativa à biocompatibilidade, que vai muito além do tal brinco de ouro - uma vez que a peça ser de ouro não é o mesmo que ela não apresentar níquel em quantidades variadas.

Outra falha IMENSA da matéria foi mostrar a perfuração da orelha de um recém nascido por um acupunturista de forma arriscada e negligente. Quando a câmera se aproxima dos brincos usados, notamos claramente que se trata de uma peça inapropriada, com hastes mal lixadas e propícias ao acúmulo de sujeira. Pior ainda, há uma gravação bem na haste do brinco, o último lugar em que deveria haver diferenças de relevo na superfície da peça! Ademais, o acupunturista faz a perfuração com uma luva de látex não estéril e usando um anestésico tópico.
Vale mencionar ainda que o médico usou o aparelho na orelha do recém nascido e não fez uma higienização da orelha posteriormente, aplicando direto a pomada anestésica. É claro que, em se tratando de um aparelho que é apenas passado na superfície da pele, não há necessidade de esterilização ou descarte, mas é preciso, no mínimo, fazer a desinfecção da "ponta" metálica, já que ela é passada na orelha de todos os pacientes, pelo visto.

Aliás, tenho também minhas dúvidas sobre a tal esterilização daquele brinco. Em momento algum foi mostrado o tal procedimento, e se o brinco foi esterilizado antes de ser levado ao consultório, pior ainda, pois foi colocado em uma superfície inadequada para ser filmado.



O correto, para a perfuração da orelha de um recém nascido, é não usar anestésico, pois há o risco de parte da pomada adentrar o furo quando passado o brinco. Ali, pode atrapalhar a irrigação do sangue na orelha e levar, em último caso, a uma necrose - sim, só por causa de uma pomada. Aliás, é por isso que A ANVISA PROÍBE O USO DE ANESTÉSICOS PARA FAZER PERFURAÇÕES.
Há um motivo bem claro para usarmos agulhas específicas para a perfuração e há um motivo ainda maior para o fato de perfuradores corporais terem abolido o uso desses "brincos com pontas afiadas", feitos para serem encaixados naquelas pistolas de perfuração, também abolidas há muito.

Ao fazer a perfuração na orelha da criança vemos também como o médico não está usando máscara, apenas luvas de látex não estéreis, para fazer o procedimento. Não há um campo protetor e o indivíduo está usando o mesmo jaleco com o qual deu a entrevista - o que me leva a pensar que ele deve ficar o dia inteiro com aquele jaleco de mangas compridas, sem se preocupar em arregaçar as mangas ou dobrá-las para que o tecido sujo não entre em contato com a perfuração.

Dá para notar ainda que, depois de toda a fala sobre pontos de perfuração e de estímulo na orelha, o médico nem mesmo fez a marcação na orelhinha do bebê...


O brinco tradicional acumula muita sujeira, a começar pelo formato da chamada "tarrachinha" que o prende. As pontas afiadas da haste são também perigosas, pois podem machucar o pescoço da criança no caso de hastes muito longas, além de seu formato ser outro fator a facilitar o acúmulo de sujeira. E, até onde sabemos, esses brincos são feitos de aço cirúrgico 316L, material até comum quando se fala em body piercing, mas que não é, absolutamente, o melhor em termos de biocompatibilidade - sim, meus queridos, a perfuração corporal avançou!

Outra questão que vale ressaltar é a "dica" dos médicos para cuidar dos "furos", ao falar que é preciso mexer no brinco constantemente - dizer isso é praticamente dar carta branca para que a pessoa fique rodando a peça no furo recente, com as mãos sujas, aumentando as chances de infecção. Qualquer folheto de estúdio contendo os cuidados que devem ser tomados é mais claro e melhor redigido. Pedir que a própria pessoa retire a peça ao notar sinais de infecção ou alergia é outro problema, pois ela não tem treinamento para retirar a peça sem ferir ainda mais o local ou deixá-lo exposto a mais contaminações.

Sobre o médico dizer que não se pode colocar um piercing na cartilagem, não consigo nem mesmo começar a dissertar. Há materiais que nos mostram, claramente, onde podemos fazer as perfurações sem atingir vasos sanguíneos e há posicionamentos apropriados para se aplicar as peças. Dizer que a orelha perfurada na cartilagem deve ficar como a de um lutador de jiu-jitsu é um exagero sem fim, pois o número de casos em que isso acontece é pequeno, pois a chamada "orelha de couve flor" é causada por contusões ou infecções graves, em casos extremos. Esse hematoma que ocorre no pavilhão auricular e leva ao crescimento de tecido fibroso é causado pelo rompimento de vasos e, repetimos, esse rompimento só vai ocorrer se a perfuração não for feita da maneira correta.

Eu tomei a liberdade de pegar duas fotos tiradas em cursos ministrados pelo piercer Snoopy, Ronaldo Sampaio, para ilustrar a forma correta de se proceder com a perfuração da orelha (aproveitem para comparar com o procedimento feito pelo médico e filmado pela Globo):



Se pudesse, ficaria horas falando a respeito dos problemas da matéria exibida em um programa que se diz voltado para a saúde e o bem estar. Vergonhosa como foi, mantenho a minha preocupação de que o adorno corporal seja vítima de maiores preconceitos e opiniões equivocadas que serão formados a partir das desinformações veiculadas pelo programa.

Para ler a nota de repúdio da Associação dos Tatuadores e Perfuradores do Brasil, clique aqui.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Pela causa trans


Hoje, uma nova movimentação está rolando no Facebook. Na semana passada, com a aprovação do casamento igualitário pela Suprema Corte dos E. U. A., muita gente começou a modificar suas fotos de perfil para uma que tivesse as cores da bandeira LGBT. O que se iniciou como uma forma de comemorar rapidamente deu lugar a uma rede de apoio à causa, com heterossexuais aderindo a uma campanha global - e, não tem como negar, a uma moda, vá lá.

Acontece que, mesmo dentro da comunidade LGBT, existem "categorias" com menor visibilidade, como é o caso da letra "T", que designa indivíduos transgênero - transexuais, travestis e pessoas trans em geral.

Porque a sociedade ainda está apegada a uma lógica que associa automaticamente sexo biológico, gênero e sexualidade, muitos continuam a não compreender a condição trans, apesar dos esforços por parte de ativistas e artistas trans em torno do esclarecimento. Por vezes, pessoas trans sofrem com a rejeição até mesmo entre grupos LGBT, dentro dos quais deveriam encontrar apoio e empatia!

Como pessoa que escolheu transitar entre os gêneros, nunca senti, na pele, a mesma exclusão que pessoas trans, mas sei o quão doloroso é a jornada de cada um que deseja modificar o corpo para se sentir em conformidade com a mente. Por isso acho extremamente importante apoiar a causa e dar visibilidade às questões trans, para que essas pessoas deixem de ser vistas como "estranhas", "erradas", "doentes"... Apesar da tristeza que é tomar consciência do quão transfóbica é a sociedade ocidental, acredito no poder da visibilidade e da educação.



Peço, então, nesta sexta-feira, dia 3 de julho, e pelo restante do mês, que mudem suas fotos de perfil com as cores da bandeira trans, em apoio a nossos irmãos, amigos, companheiros, que lutam bravamente pelo direito de serem vistos como "pessoas reais".
Para aplicar o filtro, é só enviar uma foto do seu PC para o aplicativo (http://messica.codes/transflag) e salvá-la de volta - infelizmente, ele não faz a mudança automática, mas é só enviar a foto normalmente para o Facebook.

Abaixo, fiz a tradução do texto (com a devida permissão da autora) da própria criadora do app, Jessica Willow, explicando suas motivações e a importância de uma ação que, apesar de pequena, faz uma grande diferença...

Só pra constar, eu não estou nem aí pra limitar esses posts sobre meu filtro da bandeira trans (propaganda descarada - http://messica.codes/transflag). Apesar de ainda ser relativamente pequeno em termos de internet, essa iniciativa atingiu uma proporção que eu não imaginava, sendo compartilhada por celebridades trans, ativistas e grupos LGBT por todo o mundo (até agora chegou a 124 países, pra ser exata), e até mesmo iniciou uma ação no Brazil em protesto contra a violência que atinge pessoas trans.
Ainda assim, eu reparei em algumas confusões a respeito de certas coisas que eu gostaria de esclarecer. Não se trata apenas de orgulho, trata-se também de apoiar e mudar a opinião pública. É por isso que é ABSOLUTAMENTE CRUCIAL que ALIADOS CIS compartilhem e participem, bem como a comunidade trans. Como muitos de vocês sabem, a visibilidade pode ser extremamente perigosa para pessoas trans e o Facebook adora mirar em indivíduos trans por conta da política do nome “real”, então eu não estou pedindo para que nenhum trans se exponha etc.
De forma resumida, se você é um dos 26 MILHÕES de usuários do Facebook que mudaram sua foto para colocar a bandeira do arco-íris a fim de apoiar os direitos LGBT, você já deveria estar apoiando o “T”. Se você não apoia o “T”, livre-se da bandeira do arco-íris... pelo menos até você se educar a respeito da história do movimento LGBT (e não é nosso trabalho te educar também – por favor, pesquise, não é difícil)
Se você apoia o “T”, tente mudar sua foto com a bandeira para uma bandeira trans, para dar apoio à comunidade transgênero E ESPECIALMENTE A MULHERES TRANS “DE COR”, que começaram esse movimento. Nós podemos mudar a opinião pública e, obviamente, isso já aconteceu. 10 anos atrás eu não poderia imaginar que os direitos LGBT progrediriam dessa forma, mas vejam onde chegamos agora. Não podemos esperar mais 50 anos para que o “T” alcance o mesmo nível e DEMANDAMOS UMA AÇÃO AGORA. Claro que existem outras formas, reais, materiais, de nos apoiar, mas essa é uma ação bem pequena, simples, que tem o potencial de mudar o mundo.
(texto em inglês disponível no Tumblr da autora
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Sobre a questão das mulheres trans "de cor" terem dado início ao movimento LGBT, basta procurar pelo nome de Marsha P. Johnson no Google e saber quem ela foi. Eu mesma já falei um pouco dela em um texto anterior: "Sobre paradas, tensões e representações"