quinta-feira, 28 de maio de 2015

Livro: "A modificação corporal no Brasil: 1980-1990", por Thiago Soares


A modificação corporal no mundo existe desde que o ser humano existe. Trata-se de uma história múltipla, diversa e complexa, e conseguir desenvolver uma genealogia das práticas é uma tarefa que demanda tempo e dedicação extremos.

Em seu primeiro livro, Thiago Soares (fundador do site Frrrk Guys e do grupo de estudos GESMC) traça um perfil da modificação no Brasil entre as décadas de 1980 e 1990, período em que muitas técnicas floresceram por todo o mundo, algumas um tanto quanto controversas, como os implantes, outras, já estabelecidas, encontraram mais adeptos e profissionais dispostos a experimentar com as possibilidades, como no caso da escarificação e do branding. Passando para os anos 2000, Thiago também apresenta o caso da pigmentação do globo ocular, a evolução das peças para body piercing e sua análise acaba não se restringindo apenas ao período delimitado pelo título da obra.

Tratando de diferentes perspectivas em diferentes contextos históricos, o autor expõe como a visão que temos do corpo foi sendo moldada por meio de discursos e ideologias por vezes impostas à sociedade. O resgate do primitivismo, em meados do século XX, foi um momento de mudança de paradigmas, levando a novas percepções, algumas bastante desafiadoras aos olhos da sociedade média.


A importância de um livro como esse, escrito de forma tão clara e objetiva – até didática, eu diria –, não está somente no reconhecimento de uma comunidade brasileira rica e ativa que se dedica à body mod com seriedade e afinco, mas também à abertura, para o público em geral, de um âmbito quase desconhecido envolvendo as modificações chamadas mais “extremas”. Até hoje, aqueles que optam por intervenções no próprio corpo são vistos como abjetos, como “loucos”, “inconsequentes”... caracterizados na maioria das vezes negativamente, são indivíduos julgados simplesmente por exercerem sua individualidade, seu direito de escolha. Por isso a necessidade de se discutir o tema é grande e, convenhamos, a publicação de uma obra como essa valida intelectual e academicamente a modificação corporal brasileira, principalmente sendo escrito por uma pessoa que experiencia no próprio corpo seu objeto de pesquisa – um passo que representa uma afirmação crucial, quem sabe, uma infiltração num meio acadêmico nem sempre receptivo a esse tema.

Recomendo a todos os interessados no tema e aos curiosos também! Para comprar, clique aqui.

[Nota (para a editora):] Por ossos do ofício, venho notando que muitos livros são publicados hoje em dia sem um trabalho cuidadoso de revisão (pergunto-me se há alguma revisão, na verdade). Várias vezes, ao ler um livro, começo a notar erros gramaticais que, apesar de corriqueiros quando escrevemos (afinal, escrevemos sem pensar em revisão nem em edição, trabalho que só será feito depois e que normalmente é realizado uma segunda vez pela editora), pode ser facilmente notado por um revisor, como trocar um ponto final por uma vírgula ou adicionar um verbo na oração – não é essa a função?!
Até os maiores professores precisam de alguém para revisar seus textos, por uma simples questão de distanciamento, e não consigo entender o motivo de algumas editoras estarem aparentemente dispensando a revisão.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Apelação interpretativa ou desonestidade intelectual?

A preguiça de interpretar ou de se informar não é novidade nas redes sociais. A internet e o excesso de informação editada fazem com que as pessoas tenham preguiça de pensar, de se informar adequadamente, facilitando que descarreguem suas opiniões equivocadas da maneira como bem entendem.

Em março, foram publicadas resoluções no Diário Oficial da União que garantem alguns direitos a pessoas transgênero. Essas pessoas passam a ter garantido, dentro das escolas e demais instituições de ensino, o uso do nome social e a possibilidade de frequentar os banheiros de acordo com suas respectivas identidades de gênero.

A notícia começou a se espalhar agora por conta de um texto repleto de equívocos publicado na página “Cabral arrependido”, que começa da seguinte forma:

Parece piada, achei mesmo que fosse piada, mas é real. Dilma lançou uma resolução que permite ao homossexual e aos transgêneros escolherem nas escolas e universidades, qual banheiro querem usar.

Sendo assim sua filha ou sua mulher será obrigada a usar o mesmo banheiro que um homem vestido de mulher, desde que ele alegue que se acha mulher também. Isso é um absurdo imoral e prova que o país está em um estado lastimável.

Deixando de lado os erros gramaticais, gostaria de focar apenas nas falácias argumentativas...
Claramente, o discurso do autor demonstra como ele não tem conhecimento de conceitos como sexualidade e identidade de gênero, estando alheio ainda à condição transexual ao dizer que “um homem vestido de mulher” seria um indivíduo afetado pelo projeto.

A homossexualidade é uma orientação sexual. Isso significa que indivíduos homossexuais se sentem atraídos por outros do mesmo gênero. Sendo assim, são homens que se atraem por homens e mulheres que se atraem por mulheres. Esses homens não apresentam desejo de “virar mulher”, nem essas mulheres apresentam desejo de “virar homem”, pois o que está em jogo aqui é o gênero pelo qual as pessoas se atraem, é o objeto de desejo. Dessa forma, homens gays e mulheres lésbicas continuarão, como sempre fizeram, usando respectivamente os banheiros masculino e feminino.

A transgeneridade é uma identidade de gênero que vai de encontro à do “sexo biológico”. Isso quer dizer que, se a pessoa nasceu com um pênis e foi, portanto, designada pelo médico como “menino”, ela sofrerá pelo fato de “ter mente feminina”. Trata-se da noção de “nascer no corpo errado”. Não há aqui nenhuma perversão ou questão sexual associada. Trata-se de alguém que, por se sentir num corpo inadequado, busca modificar esse corpo para que ele esteja em conformidade com sua auto-percepção, com sua mente. Não é “um homem vestido de mulher”, mas uma mulher que nasceu no corpo de um “homem”; essa pessoa deseja viver, a todo momento, como uma mulher, expressa-se como uma mulher, experiência a vida como uma mulher. Não se trata de uma simples alegação e, por isso mesmo, esses indivíduos passam por avaliações psicológicas e sentem a necessidade de se apresentarem, a todo momento, como pessoas do gênero com o qual se identificam.

Essa pessoa passa por um processo complexo de aceitação de si que só é ainda mais dificultado pela sociedade que não considera sua condição como legítima. A finalidade do tal projeto de lei é esta: LEGITIMAR A CONDIÇÃO TRANS.


No mais, banheiros públicos têm cabines justamente para que ninguém seja obrigado a se expor, e é certo que essas pessoas, cerceadas pelos valores heteronormativos, vão continuar a esconder seus corpos “diferenciados”.